quinta-feira, 23 de junho de 2016

Sangue fértil

do cabo elétrico que enfiaram à força para violentar minha força mulher
transformei em árvore, nascida de mim e florescida para fora,
suas raízes envolvendo minhas vísceras uterinas,
brotando os frutos do meu ventre
Maria.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Cora Coralina, mulher terra com muita fé na vida

Eu creio

Creio nos valores humanos
e sou a mulher terra.

Creio em Garça e na sua gente.
Creio na força do trabalho
como elos e trança do progresso.

Acredito numa energia imanente
que virá um dia ligar a família humana
numa corrente de fraternidade universal.

Creio na salvação dos abandonados
e na regeneração dos encarcerados,
pela exaltação e dignidade do trabalho.

Exalto o passado, o presente e o futuro de Garça
no valor da sua gente,
no seu constante poder de construção.

Acredito nos jovens à procura de caminhos novos
abrindo espaços largos na vida.

Creio na superação das incertezas
deste fim de século.

Cora Coralina

terça-feira, 21 de junho de 2016

Sou Maria da Vida, o amor, minha bandeira!

Às vezes fico imaginando o que minha mãe pensava enquanto bordava, uma a uma, as treze estrelas daquela primeira bandeira do Brasil...
Se eu fosse bordar essa bandeira, faria diferente.
Os milicos que se fodam!
Bordaria uma bandeira toda vermelha, que é a cor do amor, e é a cor da luta.
E nem ordem, nem progresso, na minha bandeira eu bordaria só o AMOR!

"O AMOR POR PRINCÍPIO e a ordem por base; o progresso por fim." - Auguste Comte

Carolina Maria de Jesus

"Saiam ou vou colocar vocês no meu livro!"
ecoa uma voz munida de verdade
das margens da humanidade.
Catadora de palavras, enriqueceu na poesia
CAROLINA, julgada MARIA, compartida fome DE JESUS
flor negra escondida entre as páginas cerradas de um livro esquecido

Dona Maria Flora - que não era dona de nada.

Ah, meu Imbuhy!
Não foi aqui que nasci, mas foi onde encontrei morada.
Meu Imbuhy, terra de peixes, que hoje se acaba numa estrada.
Aqui, eu bordei a minha vida. Inteira.
Entre filhos, irmãos, fios e feixes
Teci e ergui MINHA BANDEIRA!
Me chamam Dona Maria Flora Simas de Carvalho, mas não sou dona de nada, não. Sou serva.
Serva da horta, dos barcos e do borralho.

.*.*.*.

A aldeia do Imbuhy ficava em Niterói-RJ, e foi o lugar onde D. Flora Simas de Carvalho (ou Dona Yayá), que bordou a primeira bandeira do Brasil a pedido de Marechal Deodoro da Fonseca, vivia. A bandeira que ela bordou serviu de base para a bandeira de seda que foi hasteada dia 19 de novembro de 1889.
A região onde ficava a aldeia do Imbuhy tem registros de nascimentos desde o fim do século XVIII, mas a aldeia teve origem oficialmente com a chegada da família Simas Carvalho em 1986. Era uma aldeia de pescadores, a penúltima praia oceânica antes da baía de Guanabara.
O pai de Dona Flora era um militar, engajado em lutas políticas, era abolicionista, contestador. Por este motivo foi muito perseguido, tendo que mudar-se constantemente, o que fez com que Flora nascesse em Recife. Por conta das perseguições, a família voltou ao Rio de Janeiro, mas a mãe de Flora não se adaptou e voltou ao Recife, onde morreu logo depois, ficando a cargo de Flora a criação dos cinco irmãos.
Com 16 anos ela bordou a primeira bandeira do Brasil e com 19 anos foi morar na aldeia do Imbuhy a mandado de seu pai, que queria com isso afastá-la de um português por quem estava apaixonada. Na aldeia conheceu Francisco, líder dos pescadores, com quem se casou e teve 7 filhos. Ao lado da aldeia foi construído o forte de Niterói, e a convivência dos moradores com os militares foi pacifica até a instauração da ditadura militar em 1964, quando começaram a impedir os pescadores de acessar as praias e de sair da aldeia para vender seus peixes, além de ocupar a escola e o hospital da aldeia para servir de alojamento. Depois disso, mesmo com o fim da ditadura a convivência entre aldeões e militares foi conturbada.
Os descendentes de Dona Flora compunham quase a metade da população da região em 2015, quando os moradores foram relocados e a aldeia foi destruída para a construção de uma estrada.

Um encontro entre mulheres por entre palavras

"Hoje eu serei eu mesma." 
Sendo que tudo o que já fui não mais serei 
e o que virá a acontecer eu nem mesma sei. 
Não sou agora nem o passado nem o futuro, 
então o que é dessa ilusão do presente que me prende num corpo com a falsa pretenção que lhe pertenço, como um ser limitado e militante? 

O curso de uma vida ou só esse momento, 
quantos eus existe em meu corpo animal, 
onde fica a linha que separa meu ser - de tudo mais - que também é?










para viver a espera só tenho as palavras

"Onde eu exatamente me encontro?
O que me surpreende é a impressão de não ter envelhecido, embora eu esteja instalada na velhice.
O tempo é irrealizável.
Provisoriamente o tempo parou para mim.
Provisoriamente.
Mas eu não ignoro as ameaças que o futuro encerra, como também não ignoro que é o meu passado que define a minha abertura para o futuro.
O meu passado é a referência que me projeta e que eu devo ultrapassar.
Portanto, ao meu passado, eu devo o meu saber e a minha ignorância, as minha necessidades, as minhas relações, a minha cultura e o meu corpo.
Hoje, que espaço o meu passado deixa para a minha liberdade hoje? Não sou escrava dele. 
O que eu sempre quis foi comunicar unicamente da maneira mais direta o sabor da minha vida. Unicamente o sabor da minha vida.
Acredito que eu consegui fazê-lo.
Vivi num mundo de homens, guardando em mim o melhor da minha feminilidade.
Não desejei e nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos.”      Simone de Beauvoir

Um desdobramento da Maria da Fé, Guerreira

Hoje eu sinto o meu passado 
como um peso insustentável. 
Ele interfere na minha vida presente, 
e deve ser a causa 
desse fechamento de portas. Anais Nin


Rosana Paulino
                                                                                                                    Quem somos, de verdade?
            Sou filha da dor. Maria Oliveira, árvore da fé, da vida e da força. Sou fruto da resistência do amor perante um mar de violências. Já nasci assim, sendo força contrária. E segui na contramão. Vi muitas feridas abertas, outras sendo costuradas e algumas já cicatrizadas. Carrego em mim um tanto desse amor que me gerou e um tanto do ódio no qual nasci. E vivo nessa instabilidade constante. Tem algumas coisas que me ajudam a encontrar o equilíbrio, como tricotar, que aprendi com a minha mãe. Mas, isso também me faz pensar muito nela, então fico calma quando estou tricotando mas ao mesmo tempo triste por lembrar da minha mãe, e também feliz por ela ter sido uma mulher tão forte e generosa.




Os fios desse novelo me fazem lembrar histórias, que não são fáceis de contar. Histórias que vivi há muito tempo, e por muito pouco, mas que me contaram a vida toda. São as histórias das mulheres da minha vida. Esse enrolar de fios me lembram da minha mãe, e em como ela contava das suas lembranças, enrolada por um fio que queimava, ela e um pedaço da sua vida que perdeu pra sempre. 

Minha vizinha de cela, 
não tenha medo da dor, 
mais vale ser um defunto, 
que estar vivo e ser traidor. 

Eu também tava lá. E ela encontrou o fio que nos unia, e nele teceu a coragem e a vida, não se permitiu ser destruída. As memórias vão com o tempo, se desfazem. Mas tem algumas que não encontram consolo, apenas algum alívio: são as pequenas brechas da poesia. As mulheres da minha vida me envolveram com muitos fios, que foram tecendo na minha frente. E eu, deslumbrada com o movimento e a força de cada uma delas. A tortura abriu um buraco nelas, mas iam encontrando coragens, ideias, novas histórias, que iam costurando dentro de si. O fio de uma passava por outra, que passava por outra, deixando forte e resistente a costura de cada uma e a que unia todas elas.    




Aracnofilia

Eu não me importaria de ser viúva, armadeira, tarântula, caranguejeira, ou aquelas "pulgas pernudas" que só fazem sujeira e não metem medo. Desde que, ao menos uma vez, pudesse te prender, como uma aranha, colar tuas asas na minha teia, depois te envolver, atar, amarrar entre minhas pernas. E ir degustando devagarinho, sentir teu gosto, teus fluidos, teu gozo.

E te inserir em mim, da forma que fosse, pra matar essa fome de amor que ainda inseto nenhum conseguiu saciar.

[Pesquisa] Ouvir Estrelas - Olavo Bilac

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir o sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizes, quando não estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".


[Pesquisa] Todas as Vidas – Cora Coralina


Vive dentro de mim 
uma cabocla velha 
de mau olhado, acocorada ao pé
do borralho, 
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço…
Ogum. Orixá.
macumba, ferreiro.
Ogã, pai-de- santo…

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho,
seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilhada de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
Enxerto da terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos.
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha…
Tão murmurada
Tão desprezada,
Fingindo alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
MARIA, MARIA, MARIA
Na minha vida –
a vida mera das obscuras.

Hoje eu consigo desenhar o M, o A e vou escrevendo MARIA

Meu nome é Maria da Terra.

Me chamaram pra costurar a nova bandeira da minha pátria.



Desculpa, desculpa não deu tempo de lavar a mão. É que eu estava na lida quando chegou um menino pra eu benzer, mas eu senti que esse menino precisava de uma coisa mais forte, os remédios que eu conheço não dava conta não.

Foi então que ele me chamou para costurar a bandeira da minha pátria. Aí eu só vim, sem pensar!


Os meninos me deram um desenho da bandeira e no meio dela tinha um negócio escrito que eu nem sei dizer o que é, também não sei lê e nem escrivinha!

Eu já até avisei os menino se eu errar vocês me correge.



Quando eu era criança eu não tinha tempo de parar na frente dos cadernos e escreve meu nome.
Eu precisava plantar, eu precisava colher, bordar e costurar.
Foi só depois de adulta que eu senti falta de aprender o ABC, hoje eu já sei bem, desenho o M, desenho o A e vou escrevendo MARIA.



No bordado na costura sei escreve tudinho, mas não sei lê o que tá escrito.
Ah! Eu queria tanto saber ler!

Maria da Vida Bueno

Maria Bueno gostava de baile...

- "Eu semente que nasci do vento! Eu fio invisível no espaço de todo adeus. Eu, a sem Deus!"
- "Moça de família não sai com soldado! Moça de casa não trai seu amante!"
- "Santa de casa não faz milagre."

E assim, o soldado que tanto ama sua pátria sem bandeira, mancha de vermelho a farda camuflada...

Rosa de pano manchada de sangue, busto de gesso.
Farda surrada.
Amor mal fadado, coração paranaense.



[Pesquisa] A Moça Tecelã - Marina Colassanti

Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor de luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos de algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para o outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou como seria bom ter um marido ao seu lado. Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram à porta. Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando na sua vida. Aquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade. E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar. - Uma casa melhor é necessária, -- disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer. Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. – Para que ter casa, se podemos ter palácio? – perguntou. Sem querer resposta, imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata. Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.

- É para que ninguém saiba do tapete, -- disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: -- Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear. Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer o seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela. A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu. Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte.


[Pesquisa] Maria Bueno - Raul Cruz



Maria Bueno gostava de baile
moça de família não sai com soldado
moça de casa não trai seu amante
santa de casa não faz milagre.
Rosa de pano manchada de sangue
busto de gesso, peito apertado dor de ciúme
dor da saudade, acórdão, farda surrada
carmim de passar no rosto
água de flores, amor mal fadado
coração paranaense: vestido de noiva
em mulher mal falada.

[Pesquisa] Clarissa Pinkola Estés - Trechos do livro "A Ciranda das Mulheres Sábias"



Sem dúvida, "uma ocasião especial" é qualquer ocasião à qual a alma esteja presente. Você já percebeu? "Reservar" para outra hora é o jeito que o ego tem de dizer, rabugento, que não acredita que a alma mereça prazer no dia-a-dia.
Mas ela merece, de verdade. A alma sem dúvida merece.
.*.*.*.
A vida de uma árvore, a vida de uma mulher, não precisava e não precisa ser assim, tolhida e retalhada para abrir caminho para outra coisa de valor duvidoso. Há outros modos de viver sua vida e deixar outras vidas em paz; de se harmonizar, de chegar ao pleno florescimento por toda parte.
.*.*.*.
Podemos saber, mas não sabemos dizer com muita precisão onde e como tudo isso ocorre. A poesia faz-se necessária para explicar a força vital de uma mulher: a dança, a pintura, a escultura, os ofícios do tear e da terra, o teatro, os adornos pessoais, as invenções, escritos apaixonados, estudo em livros e nos nossos sonhos, conversas com outras que sejam sábias, o atento intuir, refletir, sentir e pressentir... Criações e realizações de todos os tipos são necessárias... Pois existem certos assuntos místicos que as palavras concretas isoladas não conseguem expressar, mas que as ciências, contemplações do que é invisível porém palpável, e as artes conseguem.
.*.*.*.
Não importa onde ou como vivamos, não importa em que condições... Nunca estamos sem nosso supremo aliado, pois, mesmo que nossa estrutura externa seja insultada, agredida, apavorada ou mesmo destroçada, ninguém poderá extinguir o estopim dourado, e ninguém poderá matar sua guardiã subterrânea.

[Pesquisa] A Tecelã - Mauro Mota

Toca a sereia na fábrica,
e o apito como um chicote
bate na manhã nascente
e bate na tua cama
no sono da madrugada.Ternuras da áspera lona
pelo corpo adolescente.
É o trabalho que te chama.

Às pressas tomas o banho,
tomas teu café com pão,
tomas teu lugar no bote
no cais do Capibaribe.
Deixas chorando na esteira
teu filho de mão solteira.
Levas ao lado a marmita,
contendo a mesma ração
do meio de todo o dia,
a carne-seca e o feijão.
De tudo quanto ele pede,
dás só bom-dia ao patrão
e recomeças a luta
na engrenagem da fiação.

Ai, tecelã sem memória,
de onde veio ese algodão?
Lembras o avô semeador
com as sementes na mão
e os cultivadores pais?
Perdidos na plantação
ficaram teus ancestrais.
Plantaram muito. O algodão
nasceu também na cabeça,
cresceu no peito e na cara.

Dispersiva tecelã,
esse algodão, quem colheu?
Tuas pequenas irmãs,
deixando a infância colhida
e o suor infantil e o tempo
na roda da bolandeira
para fazer-te fiandeira.
Ai, tecelã perdulária,
esse algodão, quem colheu?
Muito embora nada tenhas,
estás tecendo o que é teu.

Teces tecendo a ti mesma
na imensa maquinaria,
como se entrasses inteira
na boca do tear e desses
a cor do rosto e dos olhos
e o teu sangue à estamparia.
Os fios dos teus cabelos
entrelaças nesses fios,
e outros fios dolorosos
dos nervos de fibra longa.

Ó tecelã perdulária,
enroscas-te em tanta gente
com os ademanes ofídicos
da serpente multifária.
A multidão dos tecidos
exige-te esse tributo.
Para ti, nem sobra ao menos
um pano preto de luto.
Vestes as moças da tua
idade e dos teus anseios,
mas livres da maldição
do teu salário mensal,
com o desconto compulsório,
com os infalíveis cortes
de uma teórica assistência,
que não chega na doença,
nem chega na tua morte.

Com essa policromia
de fazendas, todo dia,
iluminas os passeios,
brilhas nos corpos alheios.
E essas moças desconhecem
o teu sofrimento têxtil,
teu desespero fabril.
Teces os vestidos, teces
agasalhos e camisas,
os lenços especialmente
para adeus, choro e coriza.

Teces toalhas de mesa,
e a tua mesa vazia.
Toca a sereia da fábrica,
e o apito como um chicote
bate neste fim de tarde,
bate no rosto da lua.
Vale de novo para o bote.
Navegam fome e cansaço
nas águas negras do rio.
Há muita gente na rua
parada no meio-fio.
Nem liga importância à tua
blusa rota de operária.
Vestes o Recife, e voltas
para casa quase nua

[Pesquisa] Martha Medeiros

"De mim, que tanto falam
Quero que reste
O que calei
Que tanto rezam por mim
Quero que fique
O que pequei
De mim, que tanto sabem
Quero que saibam
Que não sei"

 .*.*.*.

"É sempre uma grã-fina
A primeira a reconhecer
Uma libertina"

.*.*.*.

"Quando dou pra ti, sou mulher
Quando dou por mim, solidão."


[Pesquisa] Pátria Minha - Vinícius de Moraes

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!


Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.


Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamem
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama...
Vinicius de Moraes."

Retrato de Miguel Bakun - Raul Cruz


Entrevista com Maria da Terra

Repórter: Quem você é de verdade?

Maria da Terra: Eu sou a Maria da Terra, uma mãe de quatro filhos, sem marido, que vive na terra e pra terra. Tenho meu espirito forte e sigo ele. Não sou santa, já errei muito, mas errei tentando acertar. Tenho orgulho de tudo o que fiz. Na lida da vida percebi que eu sou como qualquer um, homem ou mulher, tanto faz, eu sou humana. Na minha doença encontrei força pra seguir em frente, ergui a cabeça e continuei, ainda continuo.

Repórter: “O que você espera da vida?”

Maria da Terra: Eu espero um pouco mais de mansidão. Daquele tempinho que sempre me faltou na frente do caderno. Espero ver meu filhos, os quatro, até aquele que já sei foi, e meus netos vivendo bem, não quero que eles abandonem a terra, mas também não quero que eles deixem de lado os cadernos. Hoje eu sei que tem tempo pra tudo. A vida é nossa amiga, ela corre, não para, é feito água do riacho que passa no meu quintal, se a gente ficar esperto todo dia tem um cisquinho novo, diferente, que a gente pode aproveitar.

Repórter:“Quem são seus homens?”

Maria da Terra: Essa é uma pergunta difícil, de homem eu já tive meu único marido, mas que depois da morte do nosso filho sumiu pelo mundo e nunca mais voltou. Tive meu filho, meu menino que já se foi, ainda criança teve uma doença braba, ele descansou. Até hoje rezo e fico conversando com ele, é um tempinho pela manhã e outro tempinho antes de dormir. Duas vezes no dia! Esse sim foi, porque tinha que ir! Tem meus netos que adoram pescar lambari pra gente comer na janta, os meus vizinhos que vem me ajudar a cortar lenha pro fogãozinho de casa. É acho que esses são meus homens, ah tem os meninos de longe que às vezes chegam pra eu benze!

Repórter: “Quem são seus filhos?”

Maria da Terra: Tenho o João, a Therezinha, a Benedita e a Maria Inês, quatro filhos que ganhei de presente, a Therezinha e a Benedita já são casadas e tem filho, todas as duas tão bem, de vez em quando vem posar aqui em casa, dai a gente consegue colocar a conversa em dia. A Maria Inês está aqui comigo ainda, vai pra escola todo o dia, gosto tanto quando ela me pede a benção pra ir pra escola. Hoje ela tá cursando pra ser professora. Vê se pode minha filha professora, ela chega em casa eu fico espiando as tarefa dela, acho tão bonito. Ela já me falou que nessas férias que ela vai pegar, não vai deixar eu sai de casa antes de eu aprender a ler! O Joãozinho eu já contei a historia dele, aprendi tanto sobre a vida com esse menino. Eu também acho que as plantas são minhas filhas, não é querer me achar não, mas é que elas sempre tão aqui do meu lado e me conhecem tão bem, eu vou conhecendo elas todos os dias também, podo quando precisa, rego, colho, faço muda pra ela não desaparece, é por isso só que acho que elas são minhas filhas.

Repórter: “Como será a sua vida no futuro?”

Maria da Terra:  Ah eu não sei dizer não. Espero que seja boa. Quero ficar rodeada pela minha família assim como fico rodeada pelas minhas plantas. Quero continuar sentindo o cheiro da terra, colhendo e plantando. Ah quero poder ler o que tô escrevendo nos bordados, nas costuras, até quem sabe parar um pouquinho pra lê um dos livros da Maria Inês? Pensa no futuro é bom, porque a gente pode inventar as coisas, como no sonho.

Repórter: “Por que você vive?”


Maria da Terra: Eu vivo porque Deus ainda me deixou aqui, e se ele me deixou aqui é porque eu ainda tenho que aprender alguma coisa. Também vivo pelos meus filhos, não sei se eles precisam tanto de mim, mas eu preciso ter certeza que eles tão indo pelo caminho bom da vida.


quarta-feira, 15 de junho de 2016

Um Olhar Menina de Maria da fé Mulher


Eu Me chamo Maria da Fé. Eu herdei o nome da minha mãe, Maria da fé, e é meu dever levar sua história e suas costuras para os filhos, e para os filhos dos nossos filhos e para os filhos dos filhos de nossos filhos.

Os fios desse novelo me fazem lembrar as histórias de minha mãe, muita lindas e boas de contar, mas uma nenhum puco fácil. Histórias que vivi há muito tempo. Histórias das mulheres da minha vida. Quando o fio enrosca assim, me lembro dela, e como ela contava das suas lembranças, enrolada por um fio que queimava, ela e um pedaço da sua vida que perdeu pra sempre. Os fios... Com os fios podemos construir coisas lindas, mas eles também podem servir pra nos controlar, nos oprimir... torturar. Ela remexia, gritava, e eu chorava para que libertassem a minha mãe! Ali, ela não era mais mulher, não era mais mãe, não era mais humana. Era só mais um chão a ser pisado pra satisfação deles. Mas eu tava ali. E ela encontrou o fio que nos unia. Teceu a coragem e a vida, não se permitiu ser destruída. As mulheres da minha vida me envolveram com muitos fios, que foram tecendo na minha frente. E eu só deslumbrava a força e o movimento de cada uma. A tortura abriu um buraco nela, mas iam encontrando coragens, ideias, novas histórias, que iam costurando dentro de si. O fio de uma passava por outra, que passava por outra, que passava por outra, deixando forte e resistente a costura de cada uma e a que unia todas elas. Pra sempre Maria da Fé!
Eu sou apenas uma menina!   Mas ela sempre dizia: Fé Menina!  Feminina.
Maria da fé, minha mãe era de verdade uma mulher de fé. Sua fé guiava nosso caminho e nossa vida. Teve fé na vida e na terra. Devota de Maria e Nossa Senhora aparecida, não saia de casa sem fazer uma oração. Era costureira, costurava as palavras os alimentos que preparava e bordava a educação de suas 3 filhas, Maria da Luz, Maria da graça e Maria da Fé, as chamava de três Marias. Todas as linhas já traçavam um novo sentido para o seu dia, até mesmo a linha do horizonte. Sempre lutou pelos seus direitos e criou a cooperativa das tecelãs. Lá elas costuravam tudo, costuravam até um dia quente nas noites de Inverno. Costuravam poesias... Minha mãe ouvia  o fio e a agulha, ela dizia que eram eles quem guiavam A costura, suas mãos eram apenas um instrumento da divina mãe.
Meu pai morreu, antes de eu completar 7 anos, era pescador. Morreu afogado em uma tempestade em um dia de pesca. Os pescadores conseguiram salvar o corpo. Era fim de tarde, o sol ainda não tinha se posto, minha mãe já sabia que alguma coisa havia acontecido... Todos seguravam o chapéu no peito  e a cabeça baixa. Foi a única vez em que eu vi minha mãe chorar. Des de então ela não parou de costurar, dizia que nunca faltaria  nada pra nós, se faltasse comida ela dizia que costurava um banquete pra gente comer. Quando a mãe falava do pai, dizia que eles eram como o fio e a agulha, ela era agulha e ele o fio, se entrelaçava em um linda dança de amor, um passando pelo outro, se manado, mas um dia, a mãe divina cortou o fio e eles tiveram que se separar. Mas dizia ela que é só por um tempo, porque quando o amor é de verdade é eterno... E assim crescemos, com nossa mãe transformando a dor em poesia. Com as linhas em sua mão, costurou o passado e o meu presente.  Uma  vez eu perguntei pra ela “Mãe, eu posso costurar as nossas sombras pra gente nunca se separar?” ela dizia que já estava costurado, mas por um fio invisível, que ela teceu logo quando cortaram o meu cordão umbilical. Ela não entedia por que aquele fio precisava ser cortado... Então rapidamente costurou outro. 
A musica que liga o nosso fio é essa:  

 “Mãezinha do céu, eu não sei rezar;
Eu só sei dizer: "Quero te amar"
Azul é teu manto, branco é teu véu
Mãezinha, eu quero te ver lá no céu

Mãezinha do céu, Mãe do puro amor,
Jesus é teu filho,
E eu também sou
Azul é teu manto, branco é teu véu
Mãezinha, eu quero te ver lá no céu

Mãezinha do céu, vou te consagrar
A minha inocência, guarda-a sem cessar.
Azul é teu manto, branco é teu véu
Mãezinha, eu quero te ver lá no céu

Mãezinha do céu, em tua proteção
Oh, guarda meus pais e a todos os meus irmãos!
Azul é teu manto, branco é teu véu
Mãezinha, eu quero te ver lá no céu

Mãezinha do céu, eu não sei rezar;
Eu só sei dizer: "Quero te amar"
Azul é teu manto, branco é teu véu
Mãezinha, eu quero te ver lá no céu
Mãezinha, eu quero te ver lá no céu”

A minha mãe, construiu a bandeira do Brasil e ela me disse que foi a nossa musica que inspirou ela pra tecer o manto azul na bandeira. Em homenagem a nossa senhora aparecida, para dar fé a todo o povo Brasileiro.

Sua morte foi triste, nesse dia, também morreu uma parte de mim.  O vento gelado soprava lá fora. Ela não podia mais tecer o meu sol. Enquanto o filho da puta segurava a bandeira do país
Para sempre Maria da fé. 

terça-feira, 14 de junho de 2016

Aqui algumas perguntas - esperando respostas

“Quem somos, de verdade?”

“O que esperamos da vida?”

“Quem são nossos homens?”

“Quem são nossos filhos?”

“Quem foram nossos pais e avós?”

“Como será a nossa vida no futuro?”

“Como vivemos até aqui?”

 “Por que vivemos?”

“O que desejamos, de verdade, para nossas vidas?”

“Como bate o nosso coração?” 

“Como pulsa o nosso desejo?”

“Que sangue corre em nossas veias?”

“Como é o nosso país?”

“O que é um país?”

“Onde estão as outras pessoas?”

“As outras mulheres?”

“O que esperamos umas das outras?”

“Como nos vemos?”