quinta-feira, 24 de novembro de 2016

In memoriam

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            Meio alheia ao mundo real, anestesiada das questões superficiais do dia-a-dia, vivo uma dor intensa esses últimos dias. Faltando vontade para fazer tantas coisas, tive vontade de fazer a oficina de dança da Marisol, que no passado me trouxe tantas experiências positivas, aprendizados, e fez sentir-me bem, acima de tudo. Buscava isso novamente.
            Cheguei à sede da Cia. do Abração bem na hora de início da oficina. Havia ido, pela manhã, assistir ao início do processo de cremação do corpo do meu irmão recentemente falecido. Ao chegar na sede, a porta estava aberta, mas o ambiente vazio. Estranhei. A porta nunca fica aberta se ninguém está ali. Logo senti um certo peso da ausência. Fechei a porta. Mas em seguida apareceram algumas pessoas que estavam trabalhando lá atrás, estavam transitando pela porta num entra e sai de materiais, por isso ela estava aberta. Encontrei um colega e ele me indicou que a oficina já havia começado. Fui lá.
            Marisol, como já temos uma relação de amizade, me recebeu com um abraço e me convidou a participar da oficina. Senti de cara minha ferrugem. O grupo já estava na ativa (haviam, ainda, voltado à prática no dia anterior). Percebi que precisaria me soltar rápido e busquei, na memória de meu corpo, algum resquício dos exercícios praticados no passado.
            Houve uma predisposição mais imediata, a memória estava lá. Mas senti as barreiras que a falta de prática havia reconstruído e busquei trabalhar diretamente nelas.
            A dor e o atraso me colocaram num estado mental de busca de entrega total, varrendo longe as preocupações que ameaçavam surgir. Logo tivemos uma dança compartilhada, que é um grande desafio para mim, integrar meu movimento com o de outrem (a busca por dialogar e manter-me fiel à mim, abrir-me ao outro sem dissolver-me por completo); e, estando nesse estado de entrega, tive a sensação de sucesso, livre de grandes críticas internas (que são recorrentes).  Essa sensação me fortaleceu para encarar de frente os próximos exercícios.
            Logo fomos a um momento de relaxamento. Eu estava querendo muito ele, por não ter feito no início (já que cheguei e a oficina já havia começado, foi adiantada em meia hora e não fiquei sabendo a tempo) e também por achar que necessitava dadas todas as tensões vividas nos últimos dias.
            O exercício consistia em soltar o peso do corpo no chão, deitada de barriga pra cima, e ir soltando-se cada vez mais, livrando as tensões de todas as partes do corpo. Para chegar nisso, Marisol utilizou da metáfora de que, a cada respiração, quando expirássemos era como se a pele se derretesse e envolvesse, solta, o músculo. Foi nesse momento que, feito os cálculos, me conectei diretamente com o corpo do meu irmão, que se encontrava na câmara de fogo do crematório. Ele entrou lá por volta das 11:30, sendo que fui eu quem apertou o botão que dava início ao processo. Neste momento, na oficina, era por volta das 2:30. O corpo leva entre 4h/4:30h para se desintegrar por completo. Primeiro queima a madeira do caixão, depois a roupa, aí começa a queimar o corpo, sendo que por último são os ossos. Naquele momento, em que minha pele derretia no chão, era o momento que a pele de meu irmão estaria derretendo dentro da câmara. E assim toda a materialidade dele cessaria de existir, para sempre. Quando entrei nesse pensamento, foi difícil me concentrar nos direcionamentos de Marisol. Eu estava lá dentro na câmara. Agarrada ao corpo de meu irmão. Nada faz mais sentido do que eu sentir que queimava junto com ele. Metade, se não mais, de quem eu sou vem dele. Eu estava queimando também. E derretendo junto.
            Tentei dar conta das lágrimas que escorriam e do soluço que queria manifestar-se. Demorou um tempo até que eu conseguisse me acalmar internamente e voltar a atenção à voz de Marisol. Ela estava dando a orientação de que estávamos deitados sob uma rede imensa e suspensa, talvez ligada à árvores ou nuvens. Me vi de imediato no universo estrelado, balançando na rede. No universo quântico que meu irmão habitava, e que eu acreditava que ele estaria habitando agora que se desmaterializou. Lá, ele me embalava, quase telepaticamente, ou apenas observava a minha presença ali. Aos poucos, a rede onde eu estava foi se aproximando da terra e, como uma folha, pousou suave. Pronto. Eu estava na realidade novamente; sozinha, e serena.
            Nos demais exercícios, consegui sentir as partes de meu corpo suavizadas e levíssimas. E deixei que os movimentos da minha dança fossem embaladas pela minha dor, deixando assim que ela se manifestasse para além de dentro de mim.
            Foi intenso. Muito intenso. Tanto que, ao fim da oficina, não consegui compartilhar com o grupo o que havia sentido, pois sabia que a partilha se tornaria um pranto. Tentei falar diretamente para Marisol e, claro, desabei a chorar, e ela me acolheu num abraço. Lhe contei pelo que passei, e ela me confortou. Achei digno dela saber as experiência que havia me propiciado, e juntas percebemos a dimensão de aprofundamento e libertação que tive.
            Mais uma vez, obrigada Marisol. 

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

O prazer meu senhor é abrir as mãos e coração

Um dia eu escolhi ser a Maria da Terra,
uma mulher com os pés bem fincados no chão
e enraizados na sua verdade.

Uma mão forte e abençoada veio surgindo, 
como se fosse realmente abençoada por Tata Maria Miquica, ou Vó Miquica,
ou simplesmente uma mão para abençoar cada ensaio, cada momento de criação.

Nesse clima de humildade entre grandes mestres, Leticia e Edson,
estou tendo a honra de aprender e apreender o que posso.
Tenho orgulho de estar fazendo parte desta história
e de poder colocar um dedinho nisso tudo.


obrigada!

O olhar de Izabelle Neri



























terça-feira, 20 de setembro de 2016

Na solidão e na solidariedade, estamos com Soledad

La duda lleva mi cuerpo hasta el teatro
Mi vida entera no alcanza para creer
Que puedan cerrar lo limpio de tu mirada
No existe tormenta ni nube de sangre que puedan borrar
Tu clara señal

Una cosa aprendí junto a Soledad
Que el llanto hay que empuñarlo, darlo a cantar




"Lembranças são as imagens do que vivi. Memória é o que aprendo do passado." Ñasaindy Barrett

domingo, 17 de julho de 2016

Relação com texto

Uma série de acontecimentos da minha vida cotidiana relacionadas à atividade teatral me direcionaram ao seguinte fragmento de texto que alinha-se e traduz-se em nosso processo de criação atual e usual. Cheguei à ele num momento clímax que reunia vários dos expoentes do teatro curitibano, dos quais a maioria eu desconhecia, mas conhecia alguns essenciais e tomei conhecimento de outros especiais. Era uma exposição sobre Cleon Jacques. Conheci sua história aquela noite e me aproximei de sua humanidade pela leitura dramática de um texto de Edson Bueno que, com sensibilidade e genialidade, nos permitiu conhecer a beleza da existência de Cleon. Estamos conhecendo bem o poder da escrita certeira e tenra de Edson, o dramaturgo de Pelas Mãos de Maria ou as Vozes de Simone. Um dos quadros gráficos que ilustrava alguns dos trabalhos de Cleon expunha a página de um caderno seu, qual continha o fichamento de um texto chamado "Em Busca de um Teatro Pobre". Suas anotações me chamaram a atenção, o que me fez buscar esse texto, qual estou me deleitando nesse momento. E o entrecruzamento de todos esses fatos me fez querer compartilhá-lo:


“A força das grandes obras reside no seu efeito catalítico: abrem portas para nós, colocam em movimento a maquinária da nossa auto-suficiência. Meu encontro com o texto lembra o meu encontro com o ator, e o dele comigo. Para o ator e o diretor, o texto do autor é uma espécie de bisturi que nos possibilita uma abertura, uma autotranscendência, ou seja, encontrar o que está escondido dentro de nós e realizar o ato de encontrar os outros: em outras palavras, transcender nossa solidão.” Grotowski

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Minha experiência com a Oficina de Marisol Salinas

Marisol Salinas é uma artista delicada e intensa, conhecemos seu trabalho em 2015 quando apresentou seu espetáculo "Muñequita Rota" juntamente de Tess Rivarola, na sede da Cia. do Abração. Mulheres, paraguaias, empoderadas, artistas. Forças que deveriam ser somadas ao nosso trabalho de alguma forma. Desta vez, Marisol veio compartilhar seu conhecimento conosco como coreógrafa da nossa nova criação "Pelas Mãos de Maria Ou As Vozes de Simone" e também em uma Oficina de sete dias, a qual tentarei relatar um pouco da minha experiência.


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A primeira orientação de Marisol no nosso ritual de início era de que todos respeitaríamos os nosso próprios corpos, não seria imposto nenhum movimento que não seja inerente a nós. A partir daí, inciamos um processo de exercícios baseados no"Grounding", em português, "fundamento" ou "aterramento".

O aterramento é utilizado em diversas situações do cotidiano, é a base dos prédios, é a parte fundamental dos pára-raios. Podemos utilizar como exemplo da natureza a árvore, a qual possui raízes fortes abaixo da terra para que seus galhos até a última folha se mantenham em pé e resistentes.
Este é o princípio de todo e qualquer trabalho corporal que possa transmitir verdade e essência aos olhos de quem assiste. Um espectador não se interessa por uma história sem fundamentos, uma cena de teatro onde o ator não esteja vivo no que faz, um espetáculo de dança, inclusive o ballet clássico exige as mais intensas cargas de aterramento do corpo atuante. "Somente um corpo bem aterrado será capaz de flutuar verdadeiramente."

Nesse sentido, todos os nossos trabalhos se dividiram em etapas muitos claras e numa dinâmica bastante relaxante e prazerosa, dosando a energia que nosso corpo precisa naturalmente para trabalhar.

O início da oficina se dava sempre por um estado de percepção onde abriríamos nossos sentidos para se conectar consigo, para em seguida conectar-se aos outros, aos espaços, objetos etc. A partir disso, seguíamos para exercícios técnicos, onde podíamos observar como um cientista o material de pesquisa, seja o nosso próprio corpo, seja o corpo de algum companheiro.
Em outra etapa, após um estudo técnico do corpo, partíamos para um exercício solo de improviso e investigação particular. Marisol incluia músicas entre um exercício e outro, como impulso para criação.

Após alguns minutos de experimentação e e suor, "derretíamos" até o chão, onde Marisol nos guiava com sua doce e hipnotizante voz para um profundo estado de relaxamento, aponta-se aqui mais um importante estímulo de trabalho, o qual foi necessário para guiar as seguintes etapas.
A próxima parte, advinha do exercício anterior, num profundo estado de relaxamento, nossa hipnose, impulsionada por imagens transcritas pelas palavras de Marisol, ia aos poucos se transpondo aos nossos corpos, para começar novamente outra etapa de investigação.
Em alguns dias trabalhamos juntos o final da oficina, com improvisações coletivas.

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Subjetivamente, o maior desafio da oficina foi encontrar em mim mesmo um olhar interno, pois a oficina nos voltava-se para um aspecto "intra" e depois em outros períodos para uma relação exteriorizada com seu próprio corpo e com o corpo dos colegas.

Eu tenho em mim uma grande dificuldade de fazer isso, utilizo espelho como reflexo para entender a beleza das imagens corporais e assim conseguir criar determinadas ações e partituras do meu trabalho. Sei do perigo deste tipo de trabalho, no entanto, após fazer isso, sempre busco me desconectar do espelho e me internalizo, gravo as sensações corporais que registrei enquanto estava no espelho. É como se minha alma saísse do meu corpo e se prendesse ao espelho para depois retornar a ele em outro estado.

Assim, pude identificar nestes dias com Marisol, formas interessantes e enriquecedoras de desenvolver um trabalho corporal que respeite os seus limites e que seja apresentado como queira, seja dança, seja teatro, seja circo, um corpo que se respeita e se conhece é verdadeiro, isso cria empatia. Porém, para que tudo isso seja possível, é necessário um trabalho de se desplugar de dentro e se conectar com o de fora, ou seja, em muitos momentos me vi observando os outros corpos, como se estivesse olhando para o espelho, mas numa ótica diferente, afinal, o corpo alheio é totalmente diferente do seu próprio, e isso me causava irritação e desconforto, até mesmo em alguns momentos, medo, o que me afrouxou e escancarou para os outros a minha fraqueza.
Nesse sentido, coloco a minha relação com o meu  corpo através das minha visão de mundo e de vida. 

Assim passei a me questionar: O que eu faço para que algo em mim seja verdadeiro? Como eu descubro um movimento meu? Existe algo que seja somente meu? 

Essas perguntas são dificeis de responder, e acredito que passarei a vida toda em busca de suas respostas, mas através da oficina da Marisol sei que viverei minha vida buscando o desequilíbrio e a transferência de peso para carregar esses questionamentos, que o com os pés bem enraizados poderei levar qualquer pancada que resistirei, que necessitarei me "derreter" ao chão quando necessário mas sempre plugado ao céus através de "ilos"que poderão me levantar novamente, saberei também que o corpo do outro possui exatamente aquilo que meu próprio corpo possui, e com um olhar externo e interno ao mesmo tempo, numa relação sinestésica e de simbiose serei capaz de desenvolver-me e ajudar o outro a se desenvolver, saberei também que se faltar fôlego, basta lembrar da respiração que é o nosso maior combustível, e também saberei que além de todos os movimentos capazes do nosso corpo ainda existe o movimento mais complexo de todos: 














a pausa.








No final, haverá sempre um eixo central e nós mesmos, capaz de nos levarmos aonde quisermos, basta acreditarmos em sua potência, em sua organicidade e estarmos sempre conectados, ao centro da Terra até ao Sol, numa linha que é flexível, se desloca e se firma no espaço.


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Obrigado Marisol por essa enriquecedora experiência, tenho muito, mas muito mesmo a dizer sobre estes dias, porém, meu corpo precisa absorver esse conteúdo sensível e intenso que você nos passou com tanto amor e cuidado, como quem cuida de um filho. 

Obrigado Marisol por estar junto em um  trabalho tão forte, com pessoas que acreditam no poder transformador da arte. Acredito veementemente que meu melhor remédio é a arte, o teatro, a poesia e o amor e reforço esta crença a cada vez que alguém aparece e me ajuda a encontrar isso em mim.

Obrigado a Letícia Guimarães por seu amor intenso.

ABRAÇÃO <3

terça-feira, 5 de julho de 2016

Oficinas com Marisol Salinas

04/07/2016 

           Durante esta semana, estamos sendo acaloradas por una maria especial... la Marisol. Vinda de El Salvador, residente no Paraguai e hospedada em Curitiba, percorre seu próprio asterismo e traz consigo a sabedoria de seus caminhos.
            Ter Marisol como mestra está nos permitindo uma aventura corporal. A cada dia, começamos com o corpo no chão da sala de ensaios do Abração e, guiados pelo som das palavras que habitam entre Mar y Sol, nos tornamos condutores de nós mesmos e adentramos no solo, absorvendo da energia de aterramento; para depois flutuarmos muito além da Terra; e enfim colocarmo-nos em nossa troposfera novamente. Mas dessa vez, conscientes da nossa ligação com o subterrâneo e o celestial.
            Conhecer as possibilidades do corpo é investir em nós mesmos, permitindo desenvolver-nos enquanto indivíduos e, junto, o grupo como um todo.


            A cada dia de oficina consigo sentir meu corpo mais leve, mais presente, mais relaxado e mais vivo. E isso repercute em muito em meu estado emocional, que se alegra durante os exercícios e se torna disponível ao bem estar.

            Hoje, particularmente, me diverti e ri como uma criança brincando. Tenho percebido que tiro o melhor das oficinas quando habito de verdade na minha imaginação, onde as imagens corporais que crio expandem as possibilidades do mundo físico.